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segunda-feira, 20 de abril de 2009

As polêmicas, manobras e desmandos de José Sarney, o último donatário do Brasi


PODRES PODERES
Há 50 anos no epicentro das decisões do país, José Sarney é o parlamentar mais antigo em atividade no Congresso Nacional. Romancista bissexto, imortal, ex-deputado, ex-governador, ex-presidente da República e, desde fevereiro, mandachuva do Senado - cargo que conquistou com a lei do menor esforço em apenas dois meses de manobras espetaculares e altamente controversas - ele se perpetua no poder à moda de um senhor feudal. Aqui, retornamos a trajetória do homem que sobreviveu à ditadura, à transição democrática e ao governo de quatro presidentes seguindo a máxima de que se não pode vencê-los, muita calma: ainda falta pouco
Na noite do mesmo 14 de março, Tancredo Neves foi internado e operado às pressas no Hospital de Base, em Brasília. Horas depois, em 15 de março de 1985, arrastado pelo destino, José Sarney tomou posse como presidente da República do Brasil. Eleito vice no colégio eleitoral indireto, ao final de 21 anos de ditadura, à última hora substituiu o enfermo presidente. Sete cirurgias e 38 dias depois Tancredo Neves chegou ao Palácio do Planalto, símbolo do poder que perseguira por meio século; num caixão subiu a rampa do Palácio onde Sarney já governava.
Ruas de São Luís, Maranhão, 29 anos antes. A câmera de Glauber Rocha acompanha o jovem José Sarney. O político entra no carro chapa preta, conduzido em ritmo fluvial por mãos anônimas. "Sarney! Sarney! Sarney!" - o coro ecoa na praça lotada. Risonho, bigode escovado, o jovem enfrenta a escada do palanque e acena com os braços, numa ginástica de governador em dia de posse.
No curta "Maranhão 66", registro histórico da ascensão do líder nordestino ao governo do Estado, Glauber logo vai separar palavra e imagem, promessa e montagem, espaço e tempo. Sarney discursa:
"Recebo na praça pública o direito de governar o Maranhão, direito que me foi dado pela vontade soberana do povo..."
Mas a câmera não o acompanha mais. Corre um casarão vazio; em seguida, palhoças, cortiços de taipa, onde não há sequer chão. Seqüência de prédios públicos carcomidos. E o eco das palavras de Sarney:
"O Maranhão não suportava mais, nem queria, o contraste de suas terras férteis e seus vales úmidos, de seus babaçuais ondulantes, de suas fabulosas riquezas potenciais, com a miséria, com a angústia, com a fome, com o desespero..."
Rostos famélicos em leitos de hospital. Cabeças raspadas, doentes formam par com o discurso de posse:
"O Maranhão não quer a miséria, a fome, o analfabetismo, as mais altas taxas de mortalidade infantil, de tuberculose, de malária, de esquistossomo..."
Vêm o silêncio e um homem sentado em seu leito. Confrontado pelo microfone, exibe indignação:
- Estou aqui trêmulo, sem ter um pingo de sangue na minha veia...
Uma das trajetórias mais longas na República, 43 anos desde aquele dia flagrado por Glauber nas ruas e praças de São Luís, José Sarney acaba de assumir pela terceira vez a Presidência do Congresso Nacional. Inevitável o confronto entre a história do senador de 78 anos e o discurso do jovem governador vitorioso na década de 60, eleito à sombra do ditador Castello Branco.
De uma ponta a outra, algo parece irremediavelmente perdido, exceto o poder. Sem ter superado atrasos históricos, o Maranhão de 1966 o acompanha como uma câmera fantasmagórica de Glauber. Ou uma fotografia incômoda. Por quatro décadas, o Sarney controlou a máquina administrativa do Estado. Nem mesmo o acaso da Presidência, em 1985, influenciou uma reversão dos indicadores sociais.
Na radiografia do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), os municípios maranhenses ocupavam em 2005 dramáticas posições no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O Estado cravou o baixo índice de 0,683 - 26ª posição, acima apenas de Alagoas. Em 2007, a média nacional atingiu 0,800. Esse cálculo envolve o PIB per capita, a educação e a longevidade.
Os números da educação são capazes de amargar o chá dos imortais da Academia Brasileira de Letras, onde Sarney tem assento. O levantamento do Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos, divulgado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, apontou em 2006 que os alunos do Maranhão tiveram os piores desempenhos do país. São avaliados estudantes de 15 anos em provas de matemática, ciências e leitura.
Dá para esboçar um quadro do ensino na terra do escritor Artur de Azevedo ao saber que os alunos brasileiros se situaram entre os piores do mundo: entre 57 países, 53° em matemática; entre 56, 48° em leitura. Os estudantes maranhenses estão abaixo da já vexatória média nacional.
Outros dados negativos maltratam a história do clã Sarney. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1980 e 2006 o índice de mortalidade infantil, no Maranhão, caiu de 86,1 para 40,7. A queda soa brusca, importante, mas na vida real isso significa que, em 2006, num grupo de mil crianças com menos de um ano de idade ainda morriam cerca de 40. Novamente, pior do que no Maranhão só Alagoas.
Esses indicadores negativos não encabularam a família na hora de colar o sobrenome a obras públicas, apesar da restrição legal ao batismo com nomes de homenageados vivos. Em crônica na carioca Tribuna da Imprensa, o jornalista Sebastião Nery brinca com a auto celebração familiar:
- No Maranhão, para nascer, maternidade Marly Sarney. Para morar, vilas Sarney, Kiola Sarney (mãe do presidente, já falecida) ou Roseana Sarney. Para estudar, escolas José Sarney, Marly Sarney, Roseana Sarney, Fernando Sarney, Sarney Neto... Para saber notícias, leia O Estado do Maranhão, ligue a TV Mirante ou as rádios Mirante AM e Mirante FM, todas de José Sarney. Se estiver no interior, ligue uma das 13 repetidoras da TV Mirante ou uma das 35 emissoras de rádio, também todas do mesmo José Sarney... Desde Calígula, quem sabe Nero, nunca se viu gente tão abusada - ironiza Nery.
Depois de quatro décadas de hegemonia, Sarney, senador pelo PMDB do Amapá, sofreu um revés: o opositor Jackson Lago venceu a filha do ex-presidente, Roseana, nas eleições de 2006. Durou pouco. O primeiro respiro político do Maranhão gorou. No início de março deste ano, por cinco votos a dois, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu pela cassação do mandato de Lago, acusado de abuso de poder econômico e compra de votos na eleição em que saiu vitorioso.
A sobrevida política de José Sarney não está apenas ligada aos limites do que se convencionou chamar de "coronelismo", conceito por vezes reducionista. E míope. Nunca é demais lembrar a preconceituosos e racistas em geral que figuras como, por exemplo, Paulo Maluf, Celso Pitta, Anthony e Rosa Garotinho, ou ainda o triunvirato Emílio Garrastazu Médici, João Figueiredo e Ernesto Geisel são, entre tantos outros do mesmo quilate, produtos do sudeste e do sul. O Brasil é, desde sempre, país de cúpulas empresariais, culturais, políticas, futebolísticas e todas mais, cevadas, grudadas nas tetas do estado, algo que Raimundo Faoro definiu em Os Donos do Poder, de 1958, como "Patrimonialismo Oligárquico". Cultura, modus vivendi este que independe de latitude e longitude.
O presidente do Congresso possui, e não há porque não reconhecer, um faro político raro, não necessariamente preso a métodos rudimentares. Sabe sondar os seres de Brasília, pensar a frio, blefar com ares de acadêmico, dobrar cenários desfavoráveis, misturar ingredientes da Velha e da Nova República. Essas habilidades se fizeram notar na última vitória, a de fevereiro no Senado, quando venceu a dobradinha PT-PSDB montada em torno do senador petista Tião Viana, do Acre.
Os dissabores de presidente da República, na transição democrática, certamente o vacinaram contra as artes e manhas do Congresso. Na madrugada de 15 de março de 1985, a poucas horas da posse, o general Leônidas Pires Gonçalves telefonou para o vice de Tancredo Neves, o senador Sarney. Dúvidas jurídicas e políticas ainda emperravam a definição do sucessor legal do presidente eleito, mas o general comunicou a Sarney a definição por seu nome. Diante de ponderações distintas, de prós e contras, o general Leônidas encerrou o papo: "Boa noite, presidente!"Um desembarque bem calculado do alinhamento total à ditadura militar levou-o ao papel de protagonista da redemocratização do Brasil. No dia 11 de junho de 1984, o PDS ainda se dividia entre Paulo Maluf, Mário Andreazza e Aureliano Chaves na sucessão presidencial. O livro O Complô que Elegeu Tancredo (Editora JB, 1985) guarda um instantâneo da deserção de Sarney. Precavido, o líder maranhense portava um revólver naquela manhã, na reunião marcada para a sede do PDS:
- ...Em uma das salas do edifício Sofia no Setor Comercial Sul, o senador José Sarney, revólver calibre 38 preso à cintura, tenso, rodeado de amigos, estava reunido com a Executiva do PDS para anunciar sua renúncia, em caráter irrevogável, à Presidência do Partido (...) Sarney perdera qualquer esperança de reparar as rachaduras do Partido sob o seu comando e decidira apoiar um candidato da oposição à sucessão presidencial, cristalizando assim a dissidência do PDS que ajudaria a eleger Tancredo Neves.
Na Presidência, Sarney herdou de Tancredo um batalhão de ministros inamistosos. Conduziria um transatlântico que abrigava ex-apoiadores do golpe de 1964 e peemedebistas de quatro costados. No Congresso, o plenipotenciário Ulysses Guimarães amarrava Sarney a compromissos espinhosos, num ensaio de parlamentarismo. Ulysses chegou a acumular quatro presidências simultâneas no tempo da Assembléia Constituinte (além desta, a Câmara, o PMDB e a presidência da República, na ausência de Sarney). Era um contrapeso incômodo, mas inevitável. O fracasso do Plano Cruzado só intensificaria os confrontos. Ulysses Guimarães se divertia com o jogo de poder e em espicaçar Sarney.
Um fotograma desse game no almoço de 15 de novembro de 1985. O presidente do PMDB está no restaurante Massimo, na Alameda Santos, em São Paulo. As pesquisas de opinião indicam que naquele dia Fernando Henrique vencerá Jânio Quadros em São Paulo e que país afora o PMDB vai atropelar nas urnas. Abertas as urnas Jânio Quadros derrotou Fernando Henrique e o PMDB foi atropelado em outras capitais, mas à hora do almoço a vitória era certa. No restaurante Massimo, Ulysses Guimarães informava a meia dúzia de jornalistas:
- Amanhã é dia de chegar em Brasília e perguntar: "E agora, José?"
A pergunta não foi feita.
Em recente sabatina na Folha de S. Paulo, Sarney afirmou não desejar ficar para a história como o presidente da inflação de 40%: "Quero que o povo me julgue como o presidente da agenda da democracia". Motorneiro da transição democrática, enquanto o país ainda ajustava as contas com a ditadura, Sarney cumpriu à sua maneira, com avanços e recaídas, o papel que o destino e a história lhe reservaram. As artes e manhas de ex-udenista "Bossa Nova", formado no intervalo democrático de 1946-1964, certamente o ajudaram na condução do barco até as eleições diretas, mas não o salvaram do melancólico fim de governo: derrota, em 1989, na primeira eleição direta pós-ditadura, quando chegou às urnas a bordo de uma inflação escandalosa e impopularidade recorde.
O salvo-conduto da democracia não merece ser estendido à batalha pelos cinco anos de governo, uma de suas recaídas no viés autoritário. Em dobradinha com o então ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, flor da estufa da ditadura, o presidente Sarney patrocinou o arcaico festival de distribuição de canais de rádio e televisão. Em nítida troca de favores com congressistas, no contexto da fixação do mandato de cinco anos e do debate sobre o presidencialismo, Sarney distribuiu a granel 1.091 concessões - 165 delas beneficiaram parlamentares e 257 foram assinadas às vésperas da promulgação da Constituição. Sarney e ACM saíram dessa farra cívico-midiática com um vasto capital político, o que em parte explica o tratamento amistoso de boa parte da imprensa nas décadas seguintes. E explica ainda mais o arsenal de mídia montado e mantido até hoje pelos dois chefes, e ou sucessores, em seus feudos.
Numa tentativa de polir a biografia, mais e mais o ex-presidente constrói uma vida intelectual paralela ao poder, seja como cronista, seja como romancista. A seu favor, o fato de ter ingressado na Academia Brasileira de Letras em 1980, antes de se ter tornado presidente. Mas o veio literato não esteve, não está livre de petardos. A exposição política lançou olhares impiedosos em direção à obra do autor de Os Marimbondos de Fogo e Brejal dos Guajás. No impertinente Crítica da Razão Impura Ou o Primado da Ignorância, no qual alveja também o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o humorista Millôr Fernandes vai à jugular:
- Brejal dos Guajás só pode ser considerado um livro porque, na definição da Unesco, livro "é uma publicação impressa não periódica, com um mínimo de 49 páginas". O Brejal tem 50. Materialmente, sir Ney salvou-se por uma página.
Amostras do temperamento híbrido do presidente Sarney - ora manso, ora autocrático - podem ser pinçadas nas memórias do ex-ministro da Justiça Fernando Lyra, historicamente ligado a Tancredo e por este alçado ao ministério. O recém-publicado Daquilo que Eu Sei traz um diálogo ilustrativo entre Lyra e Sarney. Pressionado pela Igreja Católica, o presidente encampou a censura ao filme Je Vous Salue, Marie, do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, expoente da Nouvelle Vague.
O ministro da Justiça tentou retardar uma decisão, para amainar os ânimos do cardinalato católico. Mas Sarney o convocou para uma conversa quase definitiva no Planalto. Queria atender ao pedido da "aliada" Igreja. O tema já motivava críticas iradas de artistas e intelectuais - entre os críticos, o compositor Caetano Veloso. Oito dias antes de deixar o ministério, Lyra entrou no gabinete presidencial. Diálogo sem volteios:
- Preciso que esse filme seja censurado hoje.
- Presidente, eu não censuro.
- Eu assumo a responsabilidade.
- O senhor assume a responsabilidade, mas a assinatura determinando a censura será a minha Não censuro.
- Eu assumo.
- Presidente, não pode ser assim. O senhor vai me dar um tempo para eu ver o que posso fazer.
Decidido a renunciar imediatamente ao cargo, Lyra ouviu conselhos de assessores e esperou a reforma ministerial. A censura só foi efetivada após sua saída.
"Não renunciei, não censurei, mas foi uma falha histórica que até hoje, vinte e poucos anos depois, continuo a pagar sem dever", confessa o ex-ministro.
O episódio realça um dos aspectos da personalidade de Sarney: nas vindas, para fortalecer-se diante de aliados patrocina, patrocinou, o necessário. Às vezes, daquele silêncio todo escapa algo entre a comédia e o patético. Noutro dia, tragicômica a entrevista de Sarney com Alexandre Garcia na Globo News. Sarney já eleito presidente do Congresso a deitar lições e falações sobre um dos raros inimigos por ele nominados, Hugo Chávez. Na argumentação do senador, ataques a aspectos que considera pouco democráticos no governo venezuelano; o cerco à mídia, a origem castrense et Cetera. Faltou o perguntador perguntar: mas presidente, falando em mídia, e o seu formidável arsenal midiático, sempre a postos para fuzilar adversários ou ungir os seus lá no Maranhão? E o seu passado político nos 21 anos de ditadura formal, clássica?Qualificado de "senhor semifeudal" pela revista britânica The Economist após a vitória de 2 de fevereiro no Congresso, o senador, que respondeu à revista em carta, se nutre do poder federal, espécie de fiador da cadeia de mando na província. Desde 1994, soube colar-se a candidaturas bem-sucedidas: Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por duas vezes, e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), também em dose dupla. Em 2002, anteviu a filha Roseana no Palácio do Planalto. Líder nas pesquisas, a candidata do PFL era a favorita na sucessão presidencial, ultrapassando Lula e José Serra. Veio uma rasteira de contornos ainda turvos, mas rasteira.
A Polícia Federal invadiu o escritório da Lunus, empresa com digitais da família, em São Luís, e apreendeu R$ 1,4 milhão. As imagens ganharam os telejornais, as manchetes e as capas. Sarney, um pote de mágoas com o governo FHC, desconfiou abertamente do dedo do candidato Serra na operação que transformou em vinagre a campanha da filha. Para dizer isso foi à tribuna, onde discursou e brandiu a revista Carta Capital, em edição que relatava o episódio. Sete anos mais tarde, presidente do Senado, Sarney se impõe como um dos protagonistas da sucessão de 2010. Irá se compor previamente com os vencedores, como se tornou tradição, ou em nome da filha seu coração ainda é um pote até aqui de mágoas?

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